Temos presenciado uma situação muito delicada desde o início do ano pela qual algumas famílias que nos procuram para atendimento têm passado: a impossibilidade de acessar os nossos atendimentos, em função de parcerias feitas entre alguns profissionais/equipes com planos e convênios de saúde. Essas parcerias são resultados do aumento significativo de processos judiciais (liminares) ganhos pelas famílias e para os quais os planos/convênios precisam responder e cumprir.
Entendo que, possivelmente, a intenção dessas parcerias (ao menos por parte dos profissionais – mas, intencionar também é comportamento e está sob controle de contingências específicas) é a mais nobre. Entretanto, uma análise mais detalhada e sob controle de efeitos em médio e longo prazo pode revelar resultados deletérios para as famílias e, inclusive, para os próprios profissionais/ categoria dos analistas do comportamento que trabalham no contexto de atendimento a transtornos do desenvolvimento:
1) Restrição de acesso das famílias ao trabalho de profissionais escolhidos por elas: uma “vantagem” (especialmente de luta politica) das famílias à possibilidade de real escolha passa a ser cerceada e ditada pelos planos de saúde. Sim, pode-se argumentar que a família pode trocar de plano, se organizar e custear um que garanta melhores condições de atendimento, etc. Ainda assim, a possibilidade em termos de luta política delas fica mais restrita. E como possível resultado secundário, porém não menos importante, a luta política pelo respeito aos direitos das pessoas com TEA também sofre prejuízos.
2) Os planos de saúde acabam não sendo politicamente impelidos a avaliar e reavaliar sua estrutura organizacional e cultural: a pressão das liminares poderia ser um bom caminho para rever uma estrutura de atendimento já inerente à lógica mercadológica de oferecimento de “Saúde” – 30 minutos de sessão para o paciente (alguns chegam a 45 minutos) e profissionais credenciados ganhando R$ 20,00/hora (sim! Pasmem!), tendo de lotar suas agendas para conseguirem um valor mais digno ao final de cada mês. Não estou julgando as decisões de parceria dos profissionais em ABA com os planos. Porém, qualquer decisão/escolha tem, intrinsecamente a ela, efeitos primários (em curto, médio e longo prazo) e secundários (também em curto, médio e longo prazo).
3) Probabilidade de “sucateamento” do serviço em ABA prestado: sim, isso pode acontecer (imagino que já esteja acontecendo). Uma decisão judicial em caráter de liminar precisa ser cumprida imediatamente. O plano de saúde não pode negar ou atrasar o início do tratamento, sob pena de sanções legais. Adivinhem sobre quem esse peso recairá? Sobre os profissionais parceiros, claro. Agora, imaginem uma família que precisa de atendimento para seu filho com diagnóstico de TEA e um profissional/equipe que, na prática, não tem como receber essa família imediatamente (não tem, eventualmente, estrutura física, equipe capacitada disponível, agenda para avaliação, etc.), mas que, pela parceria com o plano de saúde, é obrigado a atender? Torço para esse profissional/equipe ter uma organização que já tenha previsto algo desse tipo e que, antes de fechar a parceria, já tenha se preparado para atender toda a demanda (é um exercício de planejamento e previsão de trabalho de pelo menos uns 5 anos – significa que o profissional/equipe já precisa ter em seu plano de negócios, por exemplo, esse planejamento bem traçado). Do contrário, vejo apenas um caminho: famílias recebendo um atendimento sem os critérios básicos que fundamentam o trabalho.
Sabemos que a terapia fundamentada na ABA no Brasil é onerosa. Também sabemos que precisamos de meios mais eficientes de tornar esse tipo de atendimento mais acessível. Porém, talvez seja um grave equívoco imaginar que o melhor caminho seja o de parceria com setores da sociedade que ainda não tem a vaga ideia de como esse atendimento é complexo. A luta das famílias pela via das liminares merece nosso respeito e tomadas de decisões estratégicas – não impulsivas. Quando digo estratégicas, me refiro a um planejamento para pressionar o sistema de saúde particular e público a rever suas formas de organização.
Enquanto isso continuar da maneira como vem ocorrendo, perderemos todos! Ah, não… corrigindo, quase todos… alguém sai “ganhando”… adivinhem quem?
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